Os anos.



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Fosse por mim e deixaria morrer à fome os anos.
A contabilidade excessiva do corpo que, ao habituar-se aos meses, se vai deixando ficar para trás do futuro.
A repartição dos tempos facturando as dívidas passadas: o dever do vivo é ter as contas fechadas com o que lhe coube de mortalidade no mundo.

Penhoram-se pessoas, palavras pensadas, leiloadas em caixões prestes a fechar, – quem dá mais do que uma flor? – Liquidado à terra por duas ou três coroas de defunto, ao corpo resta-lhe ainda esperar o fecho do tempo que, como qualquer outro serviço público, só fecha portas à saída do último utente.

Penso no absurdo de toda a parafernália, enquanto me sento mais uma vez junto a uma coroa; é o futuro, quando a lápide colocada de fresco servir apenas para calcetar mais uma secção do cemitério.
Uma herança de ossos, que se sobe sobre a morte de outros para se saber o quanto de imortalidade nos sobrará da morte. Como eu soube ao descer por mortes centenárias, buscando-lhes raízes em montes silvados para descobrir que tenho guardada a outra parte da alma num lado avesso às ondas do mar.

Fosse por mim e morreriam à fome os anos:
cães magros arrastando as ruas com o seu latido de abandono, amarrando-as aos meus pés para que lhes sinta o peso em cada passo, e eu, que me farto das cidades nos calcanhares, levando-as comigo sem as olhar, sem as alimentar, que mortas de abandono talvez me larguem as ruas, os tempos e os anos, que nunca terão futuro suficiente para me pagarem as horas de que lhes sou credora.

(2013)
Happy Birthday to me.

Cesário - A Débil



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Eu que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.

Sentado à mesa de um café devasso,
Ao avistar-te, há pouco fraca e loura,
Nesta babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando socorrestes um miserável,
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, sudável.

«Ela aí vem!» disse eu para os demais;
E pus me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, - talvez que não o suspeites! -
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.
 

Soberbo dia! Impunha-me respeito
A limpidez do teu semblante grego;
E uma família, um ninho de sossego,
Desejava beijar o teu peito.

Com elegância e sem ostentação,
Atravessavas branca, esbelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E de altos funcionários da nação.

E foi, então que eu, homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és ténue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.


Cesário Verde

Meu amor, a casa está tão sozinha que os pássaros vêm morrer lá dentro.



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Meu amor,
a casa está tão sozinha que
os pássaros vêm morrer lá dentro.
Nada mudou, mas falta
a mão para acariciar o gato
e acolher a ninhada secreta,
o sorriso que enchia o tanque
e fazia crescer a horta.

Já ninguém apanha as laranjas mais altas
ou usa a sombra da nogueira.
E até os ciprestes se tornaram redundantes
ao ponto de os abatermos:
a ausência diz-se melhor no esplendor
inútil das rosas sem esse olhar,
nas papoilas raras que duram
o tempo de uma fotografia.

Um dia, deixaremos também uma casa assim,
casulo abandonado a sobreviver-nos.
Um de nós escutará as asas ansiosas
na chaminé, antes de pousar o livro
e amparar o último pássaro.
Só parecerá menos triste
porque não teremos, então,
nada mais a perder.

inês dias
resumo, a poesia em 2011
documenta
2012

Domingo hoje.



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É domingo hoje
mas nós não saímos

é o único dia
que não repetimos

e que dura menos

Mas põe o teu rouge
que eu mudo a camisa

Tomaremos chá
leremos um pouco

e iremos à varanda
absortos

António Reis
in Novos Poemas Quotidianos

Lobos #2



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Amo os lobos, porque amo os temperamentos fortes e rectos que preferem a violência à manha.
Os temperamentos poderosos e ricos são um terreno privilegiado para a santidade e a delicadeza de um ser forte é ao mesmo tempo mais virtuosa e mais subtil que a de um fraco.
Quando se é naturalmente tentado a dominar os outros, mais belo é então o domínio de si próprio.
- Raymond Léopold Bruckberger

Lobos #1



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As pessoas da vila não gostavam de mim,
porque eu dizia sempre o que pensava
e também porque atingia abertamente, com protestos,
aqueles que me atacavam, sem ocultar a mágoa
ou alimentar o rancor.
Louva-se muito o acto desse rapaz espartano
que escondeu sob a sua túnica um lobo,
deixando, sem um único lamento, que este o devorasse.
Eu penso que há mais valentia em agarrar o lobo
e combate-lo abertamente, mesmo em plena rua,
por entre a poeira levantada e os uivos de dor.
A língua pode ser desordeira,
mas o silêncio envenena a alma.
Quem quiser, que me censure ─ eu estou satisfeito.


Edgar Lee Masters
Spoon River
Relógio d´Água
2003

Os amarelos de novembro



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Não tem palavras a minha canção preferida. Tem antes
os amarelos queimados de novembro. Gosto de gente antiga e
obscura, gente culpada, jovem ou envelhecida para
quem a vida não passa de um contínuo de sombra
por isso sei abraçar ___por isso partem sem regresso.
Sombras que surpreendo – não quebres não
estragues o amarelo de novembro.

João Miguel Fernandes Jorge
in Lagoeiros, Relógio d'Água


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Leaving is not enough. You must stay gone. Train your heart like a dog. Change the locks even on the house he’s never visited. You lucky, lucky girl. You have an apartment just your size. A bathtub full of tea. A heart the size of Arizona, but not nearly so arid. Don’t wish away your cracked past, your crooked toes, your problems are papier mache puppets you made or bought because the vendor at the market was so compelling you just had to have them. You had to have him. And you did. And now you pull down the bridge between your houses, you make him call before he visits, you take a lover for granted, you take a lover who looks at you like maybe you are magic. Make the first bottle you consume in this place a relic. Place it on whatever altar you fashion with a knife and five cranberries. Don’t lose too much weight. Stupid girls are always trying to disappear as revenge. And you are not stupid. You loved a man with more hands than a parade of beggars, and here you stand. Heart like a four-poster bed. Heart like a canvas. Heart leaking something so strong they can smell it in the street.

- Frida Kahlo to Marty McConnell letter

ÁLVARO MUTIS (1923-2013)



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SONATA

Otra vez el tiempo te ha traído
al cerco de mis sueños fanerales.
Tu piel, cierta humedad salina,
tus ojos asombrados de otros días,
con tu voz han venido, con tu pelo.
El tiempo, muchacha, que trabaja
como loba que eiitierra a sus cachorros
como óxido en las armas de caza,
como alga en la quilla dei navio,
como lengua que lame la sal de los dormidos,
como el aire que sube de Ias minas,
como tren en la noche de los páramos.
De su opaco trabajo nos nutrimos
como pan de cristiano o rancia carne
que se enjuta en la fiebre de los ghettos.
A la sombra del tiempo, amiga mía,
un agua mansa de acequia me devuelve
lo que guardo de ti para ayudarme
a llegar hasta el fín de cada día.

Álvaro Mutis


ANTÓNIO RAMOS ROSA (1924-2013)



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Já muito fragilizado, o poeta, que estava hospitalizado desde quinta-feira, teve ainda forças para escrever os nomes da sua mulher, a escritora Agripina Costa Marques, e da sua filha, Maria Filipe. E depois de Maria Filipe lhe ter sussurrado ao ouvido aquele que se tornou porventura o verso mais emblemático da sua obra — “Estou vivo e escrevo sol” —, o poeta escreveu-o uma última vez, numa folha de papel. Público


«Em qualquer parte um homem
discretamente morre.

Ergueu uma flor.
Levantou uma cidade.

Enquanto o sol perdura
ou uma nuvem passa
surge uma nova imagem.

Em qualquer parte um homem
abre o seu punho e ri.

Antologia Poética
António Ramos Rosa
Ed. Dom Quixote

"Finding Vivian Maier" - o documentário - e "The 8mm Films of Vivian Maier"



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o documentário sobre a fotógrafa Vivian Maier de quem já aqui falei,
estreou na semana passada no Toronto Film Festival.
Realizado por David Maloof e Charlie Siskel, relata a descoberta do seu arquivo fotográfico escondido e revela a sua história de vida.




***

The 8mm Films of Vivian Maier
These fragile, observational clips uncover Vivian Maier’s largely unseen experimentation with film. The New York-born photographer spent 40 years working as a nanny in Chicago, simultaneously fostering a secret passion for image-making that led her to document the urban life of America, enjoying her productive peak in the 50s and 60s. When she died in 2009, the thousands of images that she amassed during her lifetime were only just beginning to be discovered. After winning a bid for 30,000 of Maier’s negatives in a Chicago auction house in 2007, it took 6 months for Mr. Maloof to realize the importance of what he had purchased. VIA NOWNESS

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OS VOYEURS.